Varanasi, cidade habitada há 8.000 anos. Competidora com outras no Oriente Médio pelo título de mais antiga habitação humana. Cidade sagrada para os hindus, a ponto de considerarem que morrer aqui é auspicioso - você vai direto para os planos mais altos e sua alma escapa da roda das encarnações. Quem não morre aqui, vem ser cremado aqui, e as cinzas jogadas ao rio. Sempre, dia e noite, as fogueiras queimando os mortos à beira do rio, e os vivos se banhando para se purificar. É como dizem por aqui, Varanasi é a "cidade da vida e da morte".
É pra lá que eu fui. Do deserto até Varanasi nada menos que 30 horas de trem. Aff maria. Pra quem está acompanhando pelo mapinha no blog, fui para o estado de Uttar Pradesh, à direita do Rajastão. Varanasi fica mais ou menos na altura do "e" de "Uttar Pradesh". Eu sei que a curiosidade sobre o Ganges está grande, mas não posso deixar de comentar o trem. Uma sujeira de dar arrepios. Rato dentro dos vagões. O banheiro lembrava umas instalações da guerra fria que eu visitei alguns meses atrás na ex-Alemanha Oriental e na Polônia. Isso porque eu fui de 2a classe (na Índia são 5 classes, agora imagine a suruba que deve ser nas de baixo). E o pior é o povo: na minha frente, o pai botou o menino pra urinar ali mesmo, no ato, e eu só vejo o córrego amarelo na minha direção e da minha mochila (que fica no chão abaixo do assento). Are baba.
De dia todos ficam sentados aí. De noite quem é da cama de cima sobe e o dono do assento de baixo se espicha. Há essas cortinas (da foto de cima) pra separar os compartimentos. A farofada rola. Como é ar condicionado, não tem janela. E nem vidro transparente. É esse vidro fumê sujo e pequeno que mal deixa ver o lado de fora. Mal entra luz também, então as lâmpadas vão acesas dentro. Com esse aspecto, você se sente tipo num submarino militar russo ou algo assim. |
Meu hotel estava do outro lado da cidade, então tive logo um "city tour" de tuk-tuk. O preço até não foi mal. Hotel decente também. Como já era começo de tarde (daquelas meio nubladas, úmidas, em que o chão está molhado e você não vê o céu direito), fui explorar a cidade a pé e no dia seguinte (aniversário) pegaria o afamado passeio de barco pelo Ganges ao amanhecer. A pé fui pelos ghats, de que Maya falava bastante na novela. Nada mais são que as escadarias que descem até a água do rio. Cada ghat tem um nome e, às vezes, um uso diferente. Entre eles os ghats crematórios, que é onde eu queria ir. Percorri então a "orla" inteira do rio até chegar lá.
A margem do Ganges em Varanasi (a outra margen não tem cidade) |
Nessa a tarde ia caindo, e eu no entra e sai de becos, rodando por ali. Na verdade, é parte da experiência de Varanasi. E, como nos ghats, você vê figuras de todo o tipo: de homens-santos mendicantes (sadhus) vestidos de cor-de-abóbora e com cinzas passadas no corpo, até jovens europeus hippies em viagem. Em alguns lugares você sente em Varanasi a Meca do movimento de contra-cultura dos anos 60 e 70. Não faltam lojas com livros, CDs, pôsteres e qualquer coisa que faça referência a espiritualidade, tratamentos alternativos, yoga, etc. Às vezes a coisa parece séria, outras vezes descamba pra a maconha. Fui oferecido haxixe pelo menos umas 5 vezes na rua.
Mas nessa a fumaça que eu estava vendo era já a das piras funerárias subir. Estava procurando o caminho, aí vem um senhor e diz que vai me mostrar o caminho. "Venha, por aqui". Você já fica meio cismado, mas vai. Lá fui. Entra em beco, sai em beco, chegamos no ghat funerário principal. Lá várias fogueiras queimavam, à beira do rio. Uma construção de pedra escura de seus três andares me separava das fogueiras. Dava pra contornar, mas aí o homem me leva até a entrada desse 'edifício' e fala com mais alguém.
"Ele vai lhe mostrar lá de cima. Depois na volta você dá uma passada na minha loja, tem sedas ótimas". Não respondi nada e subi com o cara. Ele falava um inglês meio decorado, às vezes repetia o que já tinha dito, e tinha dificuldade em responder se você perguntasse. Mas subimos. Lugar escuro, com gente sentada e deitada pelo chão, e a fumaça dos mortos por toda parte. Subimos as escadas e fomos lá pra cima, onde de um parapeito dava pra asssitir a toda a cremação lá embaixo. "Esse cara vai me pedir dinheiro", já pensando eu. Mas, bom, era até justo. Ele foi dando uma explicação de como procede toda a cremação, de que queima por 3h e joga o defunto meio-queimado no rio, que grávidas, crianças e sadhus (os homens-santos de abóbora que eu falei) não são cremados, que quem morreu picado de cobra também não, que só depois de tomar uma bênção do sacerdote, etc e tal. Detalhes alguns até que eu já esqueci, de tantos que são. Lá em cima onde estávamos havia também pessoas no chão, parecendo sem-teto. Uma velha acocorada junto à saída pra a escada e um homem espichado num pano sujo perto de nós. Vi lá embaixo os familiares jogarem muitas oferendas juntos com o defunto (que vai meio que mumificado pra a fogueira, numas ataduras brancas). Vão flores, objetos, e muito pó de madeira de sândalo, usado em incensos (senão ia subir o cheirão de churrasco).
A fumaça já estava me doendo os olhos, e eu já tinha ouvido a explicação toda, então hora de ir embora, a hora dolorosa do pagamento, que é sempre aquela novela porque você dá a mão e eles insistem em querer o seu braço, a perna... Chegamos à saída para a escada, onde estava a velha. E o cara: "Abaixe que ela vai lhe dar uma bênção". Abaixei, a velha pegou minha cabeça, tomei lá a bênção, aíííí sim veio: "Agora você faz a doação pra ela, que toma conta disso aqui e compra madeira pra queimar os sem-teto que morrem". Sei, sei. Levantei, tirei uma nota de 100 rúpias e estendi a ela. Ela já ia pegando, mas aí viu o valor da nota e puxou a mão pra trás, fazendo uma cara de quem tinha cheirado peido. (Ela não falava). Foi aí que o cara me veio dizendo que eu devia dar 50 kg de madeira. "E quanto é isso?", perguntei eu. "7000 rúpias" (~260 reais). Ah, tá bom, já tô dando isso tudo mesmo. Aproveitei que a fumaça já estava nos olhos e fiz o drama. Disse que ele não podia exigir isso de um estudante vindo de outro país em desenvolvimento. Aí ele, que só dava o preço em kgs de madeira, veio: "Se tem emprego, dá X kg de madeira; no job, Y kilos". Vai dar o golpe da madeira em outro, meu tio. No fim das contas ele falou pra a velha aceitar as minhas 100 rúpias, mas insistiu que queria outras 100 rúpias pra ele próprio pela explicação. Heh, sabia. Mas essas eu já tinha preparado, e dei o fora antes que inventassem mais alguma coisa.
Mas saindo, como que cronometrado, estava lá chegando já o cara que me achou nos becos. "Ah! Bem na hora! Venha ver a minha loja!". Putz. Acabei indo com o cara. Aí é sempre aquela história: "Sente, toma um chai?", e vai lhe empurrando a loja inteira. Não é tão mal, o problema é que nessa onda você acaba comprando. O legal foi que, quando eu disse que era do Brasil, ele me mostrou um caderno de visitas assinado pelo Zé de Abreu (que fez o papel do Pândit) e com uma foto nessa mesma loja, do ano passado, quando fizeram as filmagens de Caminho das Índias.
Como a noite já tinha caído, aproveitei pra assistir o ritual que fazem à beira do rio no ghat principal, onde dizem que Brahma, o deus criador, certa vez veio pessoalmente. Fotos abaixo, e no próximo post o dia seguinte, do aniversário, no Ganges propriamente dito.
Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Naquele prédio, meio a esquerda com os vãos escuros é que eu estava. |
Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Restos mortais e oferendas. |
Cerimônia à beira do Ganges, com música, mantra e incenso. |
Cerimônia à beira do Ganges. Após o incenso, mantra e movimentos com grandes lampiões e fogo. |