sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mairon vai ao Ganges - Parte 1: Visita à cremação à beira do rio

O Rio Ganges. Um dos mais importantes do mundo. Provavelmente o mais festejado - a ponto de ser considerado um deus pelos hindus. Ou melhor, uma deusa, "Mãe Ganga", e reverenciado como tal. Ao mesmo tempo, um dos afamados rios mais sujos de todo o mundo - dentre aqueles em que as pessoas ainda entram para nadar, é claro.

Varanasi, cidade habitada há 8.000 anos. Competidora com outras no Oriente Médio pelo título de mais antiga habitação humana. Cidade sagrada para os hindus, a ponto de considerarem que morrer aqui é auspicioso - você vai direto para os planos mais altos e sua alma escapa da roda das encarnações. Quem não morre aqui, vem ser cremado aqui, e as cinzas jogadas ao rio. Sempre, dia e noite, as fogueiras queimando os mortos à beira do rio, e os vivos se banhando para se purificar. É como dizem por aqui, Varanasi é a "cidade da vida e da morte".

É pra lá que eu fui. Do deserto até Varanasi nada menos que 30 horas de trem. Aff maria. Pra quem está acompanhando pelo mapinha no blog, fui para o estado de Uttar Pradesh, à direita do Rajastão. Varanasi fica mais ou menos na altura do "e" de "Uttar Pradesh". Eu sei que a curiosidade sobre o Ganges está grande, mas não posso deixar de comentar o trem. Uma sujeira de dar arrepios. Rato dentro dos vagões. O banheiro lembrava umas instalações da guerra fria que eu visitei alguns meses atrás na ex-Alemanha Oriental e na Polônia. Isso porque eu fui de 2a classe (na Índia são 5 classes, agora imagine a suruba que deve ser nas de baixo). E o pior é o povo: na minha frente, o pai botou o menino pra urinar ali mesmo, no ato, e eu só vejo o córrego amarelo na minha direção e da minha mochila (que fica no chão abaixo do assento). Are baba.


De dia todos ficam sentados aí. De noite quem é da cama de cima sobe e o dono do assento de baixo se espicha. Há essas cortinas (da foto de cima) pra separar os compartimentos. A farofada rola. Como é ar condicionado, não tem janela. E nem vidro transparente. É esse vidro fumê sujo e pequeno que mal deixa ver o lado de fora. Mal entra luz também, então as lâmpadas vão acesas dentro. Com esse aspecto, você se sente tipo num submarino militar russo ou algo assim.
Mas de certa forma foi boa preparação para a chegada a Varanasi. Varanasi é a cidade mais imunda que eu já vi na minha vida. Esqueça os padrões do que você acha que é sujo. Aqui esses padrões são rapidamente redefinidos. Você mal sai da estação de trem e já sobe aquele cheiro de fezes (humanas mesmo), vulgo fedor de bosta. Lixo você sai driblando pelas ruas, no meio das cabras, porcos e vacas. E pra piorar, tinha chovido. Aaaaaaare baba.

Meu hotel estava do outro lado da cidade, então tive logo um "city tour" de tuk-tuk. O preço até não foi mal. Hotel decente também. Como já era começo de tarde (daquelas meio nubladas, úmidas, em que o chão está molhado e você não vê o céu direito), fui explorar a cidade a pé e no dia seguinte (aniversário) pegaria o afamado passeio de barco pelo Ganges ao amanhecer. A pé fui pelos ghats, de que Maya falava bastante na novela. Nada mais são que as escadarias que descem até a água do rio. Cada ghat tem um nome e, às vezes, um uso diferente. Entre eles os ghats crematórios, que é onde eu queria ir. Percorri então a "orla" inteira do rio até chegar lá.

A margem do Ganges em Varanasi (a outra margen não tem cidade)
Às vezes não dá pra ir de um ghat a outro, porque o rio bate direto no paredão de uma casa, ou porque o lamaçal é demais e não deixa passar. Aí é preciso entrar pelas várias ruelas e becos ali da cidade e contornar. É nessa que você se perde. E eu me perdi.

Nessa a tarde ia caindo, e eu no entra e sai de becos, rodando por ali. Na verdade, é parte da experiência de Varanasi. E, como nos ghats, você vê figuras de todo o tipo: de homens-santos mendicantes (sadhus) vestidos de cor-de-abóbora e com cinzas passadas no corpo, até jovens europeus hippies em viagem. Em alguns lugares você sente em Varanasi a Meca do movimento de contra-cultura dos anos 60 e 70. Não faltam lojas com livros, CDs, pôsteres e qualquer coisa que faça referência a espiritualidade, tratamentos alternativos, yoga, etc. Às vezes a coisa parece séria, outras vezes descamba pra a maconha. Fui oferecido haxixe pelo menos umas 5 vezes na rua.

Mas nessa a fumaça que eu estava vendo era já a das piras funerárias subir. Estava procurando o caminho, aí vem um senhor e diz que vai me mostrar o caminho. "Venha, por aqui". Você já fica meio cismado, mas vai. Lá fui. Entra em beco, sai em beco, chegamos no ghat funerário principal. Lá várias fogueiras queimavam, à beira do rio. Uma construção de pedra escura de seus três andares me separava das fogueiras. Dava pra contornar, mas aí o homem me leva até a entrada desse 'edifício' e fala com mais alguém.

"Ele vai lhe mostrar lá de cima. Depois na volta você dá uma passada na minha loja, tem sedas ótimas". Não respondi nada e subi com o cara. Ele falava um inglês meio decorado, às vezes repetia o que já tinha dito, e tinha dificuldade em responder se você perguntasse. Mas subimos. Lugar escuro, com gente sentada e deitada pelo chão, e a fumaça dos mortos por toda parte. Subimos as escadas e fomos lá pra cima, onde de um parapeito dava pra asssitir a toda a cremação lá embaixo. "Esse cara vai me pedir dinheiro", já pensando eu. Mas, bom, era até justo. Ele foi dando uma explicação de como procede toda a cremação, de que queima por 3h e joga o defunto meio-queimado no rio, que grávidas, crianças e sadhus (os homens-santos de abóbora que eu falei) não são cremados, que quem morreu picado de cobra também não, que só depois de tomar uma bênção do sacerdote, etc e tal. Detalhes alguns até que eu já esqueci, de tantos que são. Lá em cima onde estávamos havia também pessoas no chão, parecendo sem-teto. Uma velha acocorada junto à saída pra a escada e um homem espichado num pano sujo perto de nós. Vi lá embaixo os familiares jogarem muitas oferendas juntos com o defunto (que vai meio que mumificado pra a fogueira, numas ataduras brancas). Vão flores, objetos, e muito pó de madeira de sândalo, usado em incensos (senão ia subir o cheirão de churrasco).

A fumaça já estava me doendo os olhos, e eu já tinha ouvido a explicação toda, então hora de ir embora, a hora dolorosa do pagamento, que é sempre aquela novela porque você dá a mão e eles insistem em querer o seu braço, a perna... Chegamos à saída para a escada, onde estava a velha. E o cara: "Abaixe que ela vai lhe dar uma bênção". Abaixei, a velha pegou minha cabeça, tomei lá a bênção, aíííí sim veio: "Agora você faz a doação pra ela, que toma conta disso aqui e compra madeira pra queimar os sem-teto que morrem". Sei, sei. Levantei, tirei uma nota de 100 rúpias e estendi a ela. Ela já ia pegando, mas aí viu o valor da nota e puxou a mão pra trás, fazendo uma cara de quem tinha cheirado peido. (Ela não falava). Foi aí que o cara me veio dizendo que eu devia dar 50 kg de madeira. "E quanto é isso?", perguntei eu. "7000 rúpias" (~260 reais). Ah, tá bom, já tô dando isso tudo mesmo. Aproveitei que a fumaça já estava nos olhos e fiz o drama. Disse que ele não podia exigir isso de um estudante vindo de outro país em desenvolvimento. Aí ele, que só dava o preço em kgs de madeira, veio: "Se tem emprego, dá X kg de madeira; no job, Y kilos". Vai dar o golpe da madeira em outro, meu tio. No fim das contas ele falou pra a velha aceitar as minhas 100 rúpias, mas insistiu que queria outras 100 rúpias pra ele próprio pela explicação. Heh, sabia. Mas essas eu já tinha preparado, e dei o fora antes que inventassem mais alguma coisa.

Mas saindo, como que cronometrado, estava lá chegando já o cara que me achou nos becos. "Ah! Bem na hora! Venha ver a minha loja!". Putz. Acabei indo com o cara. Aí é sempre aquela história: "Sente, toma um chai?", e vai lhe empurrando a loja inteira. Não é tão mal, o problema é que nessa onda você acaba comprando. O legal foi que, quando eu disse que era do Brasil, ele me mostrou um caderno de visitas assinado pelo Zé de Abreu (que fez o papel do Pândit) e com uma foto nessa mesma loja, do ano passado, quando fizeram as filmagens de Caminho das Índias.

Como a noite já tinha caído, aproveitei pra assistir o ritual que fazem à beira do rio no ghat principal, onde dizem que Brahma, o deus criador, certa vez veio pessoalmente. Fotos abaixo, e no próximo post o dia seguinte, do aniversário, no Ganges propriamente dito.

Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Naquele prédio, meio a esquerda com os vãos escuros é que eu estava.
Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Restos mortais e oferendas.

Cerimônia à beira do Ganges, com música, mantra e incenso.
Cerimônia à beira do Ganges. Após o incenso, mantra e movimentos com grandes lampiões e fogo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Mairon no deserto - Parte 2: Três dias no lombo de um camelo

Às 5:20 da manhã eu acordei. Havia chegado o dia. Tudo acertado, às 6h da manhã passava o jipe que ia me pegar numa rua aqui perto do hotel em Jaisalmer. Antes mesmo de o sol nascer, lá fui eu.

Um par de roupas somente - não haveria porque trocar. Nada de banho por três dias. Nada de banheiro.

Fui em minha nova vestimenta branca, comprada nas mãos de Joni e Soni lá em Udaipur. Mangas compridas e calças compridas também, pra evitar o queimar do sol. Pensei em levar turbante também, hehehe (não, vocês não vão me ver de turbante, haha), cheguei a experimentar alguns em algumas lojas, mas em geral eu não gosto de usar nada na minha cabeça, por tanto fui sem. Tenho cabelo suficiente.

No caminho, no jipe, a primeira coisa que fiz foi tirar o relógio do braço. Desliguei o celular - caso funcionasse pois há torres em Jaisalmer. Pronto, estavam cortadas as ligações com o mundo civilizado.

O jipe seguiu por mais de uma hora numa estrada, pra se certificar que estávamos bem embrenhados no deserto. Thar, o deserto daqui, não é como o Saara. Lembra muito mais aqueles desertos da Palestina que a gente vê em filmes de Jesus na época da Páscoa. Terra seca e pedregosa, mato espinhento, arbustos aqui e ali. Em alguns locais, dunas de areia. E eu de barba e de branco caminhando por lá. Pronto, estava feito o cenário pra a história bíblica.

Nascer do sol no Deserto de Thar


O Deserto de Thar
O jipe me deixou no "acampamento", onde havia basicamente uma fogueira o que levaríamos conosco - água, comida, e alguns utensílios básicos, cobertor etc. Havia também os camelos. Os camelos de Thar são na verdade dromedários, com um lombo só nas costas em vez de dois. E eles são ENORMES. As costas deles ficam a dois metros de altura do chão, então você parece que está montado numa girafa.

Jamal, o cameleiro principal, e Armik, seu escudeiro (um garoto de 15 anos) seriam minha companhia pelos próximos dias. Outras agências que organizam isso fazem você ir sentado junto com o cameleiro, pra ter maior segurança. Mas não aqui. Aqui era eu e Deus. No caso, o deus Shiva, que era o nome do camelo que eu peguei. Ledo engano. Minhas mãos ainda estão doloridas e com as cicatrizes de tentar me segurar no lombo de Shiva.

Os primeiros dez minutos em cima do camelo são O cagaço. Você "Pronto, lascou, vou cair daqui de cima". Tem sela mas nenhum lugar firme de segurar. Como você vai na frente do lombo, pra trás você não cai. Por outro lado, capotar pra frente, em cima do pescoço do camelo, é a coisa mais fácil do mundo. E ele arreia sem avisar, ajoelha pra frente e se você não estiver com o corpo todo jogado pra trás, lá vai você. Havia umas sacolas junto da sela, então tentei me agarrar a tudo que pude. Quando o camelo começa a trotar, quem sacoleja é você. É a receita certa para voltar o chai.

Jamal (à direita) com um pastor de ovelhas e cabras da região. Atrás, Armik, o escudeiro de Jamal e excelente cozinheiro.
Fomos os três deserto adentro, e passamos tanto por áreas isoladas quanto por áreas onde alguns moradores tentavam - e conseguiam - fazer alguma agricultura. Muito parecido com os sertanejos. Havia pastores também. Paramos e visitamos algumas aldeias no caminho, casas muito simples feitas de barro e esterco seco. As paradas eram também uma bênção para as pernas e os quadris inteiros, que depois de horas trotando estão pedindo arrego. Para os homens, sente errado e você vai tomando batida de ovos o caminho inteiro. Para as mulheres, quanto maior o peito deve ser mais difícil, porque o sobe e desce não é mole.

Quando o sol vai chegando ao topo, é hora de parar, pois fica quente demais (e olhe que não é o verão, aqui agora é meio do outono). Nos ajustamos onde haja alguns arbustos ou árvores pequenas que dêem sombra, e ali a gente se assenta. Eu era o único turista, e Armik não falava inglês, então minha conversa toda era com Jamal. Não era um mau sujeito, mas às vezes meio inconstante. Ele implicou que queria o meu celular pra ele, então no primeiro dia eu me senti igual Frodo seguindo viagem na companhia do Gollum: seguindo por áreas inóspitas e acampando guiado por alguém que estava doido por algo seu. "Posso ver um pouco o seu celular?", "Posso pegar?", "Você não troca ele por alguma coisa não?". Are baba.

Dunas de areia no Deserto de Thar
Após a camelada pós-siesta, no fim do dia dói tudo. Parece que você foi estuprado e que lhe deram uma surra. O suor também lhe encharca, você bebe água igual doido, e a areia vai por toda parte. Nos assentamos, desta vez pra dormir. Tínhamos bons cobertores pra evitar a frieza da noite. Deitar na areia também é confortável (após passado o calor do sol, é claro). Comida simples mas boa, que havíamos trazido. Tudo cozido ali no fogo do acampamento mesmo. A princípio o estômago não queria comer muito - parecia estar vendo que não havia banheiro por perto e não queria pôr pra nada dentro. Hehe, mas não tinha pra onde correr. Não ia passar três dias sem comer ou se ir ao banheiro. Ali, o mundo todo é banheiro à sua disposição. Eu havia levado papel comigo, então o negócio foi ir atrás do arbusto mesmo, hehehe.

À noite o melhor de tudo. A lua brilhava forte jogando sua luz na areia. Melhor ainda, após a lua se pôr no meio da noite, as estrelas ficavam ainda mais claras, e a visão do universo era melhor do que nunca.

No segundo dia levantei cedo, antes mesmo do sol. E o nascer do sol é um outro espetáculo. Tomávamos chai com leite tirado das cabras dali mesmo, e fervido nas especiarias. Mais um dia de camelada. Desta vez eu já estava garantido o suficiente pra tirar a câmera do bolso e ir fotografando de cima do camelo.


Inclusive, troquei de camelo. Fui de Shiva para Al Pacino, um camelo mais experiente e cuja sela dava mais estabilidade. Você começa a se sentir já o Sheik das Arábias, hehehe.


No deserto. Parecendo personagem de novela espírita da Globo.
A verdade é que entre andadas pela areia, pela terra pedregosa, e trotadas no lombo do camelo, uma experiência única - dolorida, mas diferente de qualquer passeio mais convencional. Ao final do terceiro dia você está todo quebrado, e as moscas já reconhecem seu suor impregnado. O banho, quando você toma, é quase uma ressurreição de Páscoa, tamanha é a sujeira, o cansaço, e a vontade d´água.

Já no terceiro dia
Água agora é que não vai me faltar. Próximo passo: 30h de trem, de Jaisalmer, a Varanasi, pra me banhar no Ganges no aniversário. Até lá!

Al Pacino e o sol.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Mairon no deserto - Parte 1: Chegando na região

Ônibus para Jodhpur. Finalmente eu estava rumando ao oeste do Rajastão, ao Grande Deserto de Thar, das caravanas, fortes e camelos. Jodhpur, "a cidade azul", fica às bordas do deserto. É a última cidade de porte antes da aridez começar. No ônibus o caminho me já dava uma prévia do que me aguardava. A poeira subia. Eu passava o dedo na cara e sentia a sujeira. Sentia areia até nos dentes, mastigando poeira. Mas o visual da cidade ao entardecer quando cheguei valeu a pena.

Visão de Jodhpur ao entardecer. Última grande cidade antes do Deserto de Thar, no oeste do Rajastão.
Quando o ônibus chegou a Jodhpur era o cair da tarde. Eu havia dado meu nome ao hotel, que supostamente mandaria alguém pra me buscar. Ainda entrando na cidade, numa das várias paradas antes da final na "rodoviária", já um tuk-tukeiro chegou na janela pelo lado de fora, abordando dois franceses (sentados atrás de mim) e eu: "Eu vou seguir o ônibus de vocês até a parada, e chegando lá levo vocês pra hotel, ok?!". Você vai dizer o que? Na prática não foi uma pergunta, foi um anúncio. Pelo menos a parte do "vou seguir vocês". No caminho dei uma olhadela pra trás pra ver se o ônibus tinha despistado o sujeito. Que nada. Ele me vê e ainda dá um tchauzinho, tipo "Ói eu aqui!". Putz.

Na parada final eu entendi porque ele havia nos abordado com antecipação. Na hora de descer eu me senti uma celebridade. Na boa, tinha uns oito tuk-tukeiros cercando a porta do ônibus. Não tinha espaço nem pra pisar sem tirar eles da frente. E cadê o fulano que era pra vir me pegar? Tudo o que eu vi foi, no meio do tumulto, um dos tuk-tukeiros com um papel escrito AIRONAL. Nem passou pela minha cabeça que esse era eu; normalmente tem várias pessoas sendo esperadas e tuk-tukeiro de sobra querendo dar golpe, então é bom estar bem certo antes de ir com um deles. Mas ele vem falando: "Bréju! Brejú?".

Já sacaram o que é Breju? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três... Brasil.
Virei Aironal do Breju, prazer.

Passada a gafe, me instalei em Jodhpur por alguns dias. Grande parte da cidade é de fato bem azul. Mas a visão principal tem cor de rocha, é o imponente forte Mehrangarh, que parece ter saído de O Senhor dos Anéis. (Me fez lembrar Helm's Deep, a fortaleza do segundo filme).

O forte Mehrangarh em Jodhpur, Rajastão
O forte data de 1459, quando Jodhpur foi fundada. Visto de perto ele é ENORME, e do alto você vê não só a cidade inteira mas também kilômetros além. O melhor era, ao pôr do sol, uma revoada que sobrevoava sempre o forte e dava uma visão interessante, parecendo mesmo de filme de fantasia ou aventura, de pássaros negros voando à frente do sol poente junto a uma fortaleza. Mehrangarh é talvez a fortaleza mais impressionante que eu já vi.

Visão do pôr do sol do alto do forte Mehrangarh, em Jodhpur. Os pontos escuros no céu são centenas de pássaros revoando.
Forte Mehrangarh, Jodhpur
Jodhpur tinha também, nos arredores, os Jardins de Mandore, uma área verde onde estão vários cenotáfios (monumentos fúnebres erguidos em memória de alguém que morreu, mas sem os restos mortais estarem lá, por isso não são tumbas) de toda a linhagem do marajá da região. O visual novamente lembra filmes e jogos de aventura. Mas na realidade a aventura mesmo é andar no meio da macacada que está por lá. Eles são notórios por roubarem óculos, comida, ou qualquer coisa que você tiver na mão. E adoram mostrar os dentes e pular pra lá e pra cá, dando a impressão de que numa dessas vêm no seu pescoço. Numa hora tive que cruzar uma ponte que tinha macacos de um lado e do outro, dúzias deles, e a sensação é a de que você está cruzando uma rua perigosa com gangsters de um lado e do outro. Aí você vai devagar, com aquele jeito que quem não quer nada, mas olhando de canto de olho enquanto eles olham você passar, hehehe.

Cenotáfio nos Jardins de Mandore, estruturas erguidas em memória de cada um dos antigos marajás da região. Como tumbas, mas sem os restos mortais estarem lá.
A macacada nos Jardins de Mandore. Ágeis e astutos, esses moleques. Olho vivo nos seus pertences. (Não, não pegaram nada meu não, hehe).
Corredor polonês de macacos. É a mesma sensação de estar andando numa rua no meio de uma gangue.
Terminado o passeio por Jodhpur e seus arredores, era chegada a hora de adentrar o deserto pra valer. Lá há basicamente uma cidade, Jaisalmer, e é pra lá que eu fui. Mais cinco horas e meia de ônibus, que dessa vez pareceram durar o dobro. "Pinga-pinga" que não acabava mais no caminho, e um pinga-pinga literal, mais desagradável, de líquidos desconhecidos entrando pela minha janela, vindos de passageiros à frente ou em cima (os ônibus aqui não têm espaço para bagagem sobre os assentos; em vez disso, há uma escadinha e lá em cima há espaço pra a pessoa ir sentada "no chão", junto à vidraça, com uma cortininha pra fechar). E aí lá em cima rola a farofada e tocam os rádios, já que os indianos não têm a menor cerimônia de ligar o radião alto pra o ônibus inteiro ouvir. Quanto aos líquidos que caiam, preferi não pensar muito no que podia ser.

Fim da tarde, cheguei a Jaisalmer. Mais um truque desses de ônibus, pega-turista. O cobrador me inventa, na hora que fui botar a bagagem no fundo: "Tem a taxa de bagagem que são 20 rúpias. Aí, *tapa na lataria do ônibus pra dar efeito*, dou minha garantia que chega lá com segurança". Você vai dizer o que? Afinal era menos de um real. Deixei passar, por mais que desconfiasse que era picaretagem, mas disse que só pagaria na chegada. Foi aí que, em Jaisalmer, o cara do hotel estava lá na parada final e deu um esporro no fulano quando ele veio tentar cobrar a tal taxa. Demos o fora e eu guardei minhas 20 rúpias pra outra coisa.

Finalmente, Jaisalmer, no meião do deserto. Uma cidade toda feita de pedra, arenito amarelo, portanto cor de areia mesmo. A cidade é toda cor-de-deserto. No meio, um imponente forte de 1156.

Vista de Jaisalmer, cidade no Grande Deserto de Thar, Rajastão. O forte data de 1156, quando então a cidade começou a crescer nos arredores.
Jaisalmer é uma cidade divertida de se andar. Parece um video game. Há poucas ruas em que passa carro, e a grande maioria são becos em que há touros/vacas, cachorros, cabras e pessoas circulando. Me perdi várias vezes, mas como a cidade não é tão grande você acaba se achando (embora isso possa levar tipo uma ou duas horas batendo perna à deriva).

Típica rua em Jaisalmer, espaço para transeuntes humanos e animais, além de motocicletas ocasionais. As casas melhores sempre construídas acima do nível da rua, pra evitar que entre muita areia. Nas bordas, os esgotos abertos, como de costume nas cidades daqui.
Rua com mercados em Jaisalmer
Companheiros constantes nas andadas pelas ruas de Jaisalmer: cães, cabras e bovinos. Às vezes a educação - e o juízo - pedem que você dê passagem a eles.
Mas é o forte, que é ainda hoje habitado e que conta com sua própria gama de ruas, ruelas e mercados, o ponto alto da cidade, em todos os sentidos. Não houve cimentação, então ele é todo feito simplesmente com uma pedra em cima da outra. Às vezes cai um pedaço, pois ele não foi preparado pra ter gente vivendo com água encanada e esgoto rodando suas estruturas. Então há um trabalho de conservação, mas muito ainda a desejar. Se vê lixo doméstico - e de turistas - por várias partes.

Forte de Jaisalmer, de 1156.

Vista de Jaisalmer do alto do forte
Visitada a cidade, era chegada a hora de concretizar meu plano de passar três dias no lombo de um camelo no deserto, deitando na areia e vendo as estrelas. Continua na Parte 2...

Homem do deserto fumando em sua hookah.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Indo onde esteve James Bond

Ocidental que se mete em desventuras no terceiro mundo, de quem você lembra? Vai depender do seu imaginário de livros e filmes. Às vezes me dá uma sensação de Indiana Jones ou até Lara Croft quando visito as tumbas, mas no dia-dia da cidade, de me meter em ônibus e barco, é James Bond (007) quem me vem à mente. E desta vez achei de visitar exatamente um lugar onde ele esteve: Udaipur, local do filme 007 contra Octopussy.


Udaipur é a chamada "Lake City", tida como a mais romântica do Rajastão e talvez de toda a Índia. O filme (de 1983) contribui muito pra isso, pra quem viu. Pra quem não viu, não tem problema, os restaurantes pela cidade inteira exibem o filme toda noite. No sul do Rajastão, Udaipur é rodeada de colinas, e com um belo lago no meio onde estão dois palácios, hoje hoteis de luxo. A cidade é também repleta de havelis, que são tipo casas coloniais, em estilo antigo, com arcos, varandas, pátios no meio, etc. Muito charmosas. Boa parte se tornou museu ou hotel/restaurante. Muito bonitos de visitar, e nesse decorrer vocês verão algumas fotos.

Primeiro uma visão geral de Udaipur:

Visão do anoitecer em Udaipur, de um dos hotéis de luxo no centro do lago (Haa, tá pensando que eu não fui no hotel de luxo? Fui sim, de penetra, dei uma volta, senti a ambience e me mandei)

A cidade é agradável de visitar e relativamente boa de explorar a pé (o que é raro na Índia). Nesse caso eu sempre aproveito pra andar à paisana. Hehe, eu explico. Como na Índia o povo fica enchendo (e muito) o saco de turistas pra comprar isso e aquilo, pra dar esmola, pra pepepê e caixa de fósforo, eu às vezes saio disfarçado de indiano. A cara morena já ajuda, com a barba então fica beleza. O traje típico do homem indiano moderno é camisa listrada ou xadrez (daquelas tipo de festa junina) e calça comprida. Fácil. Nem todos caem no disfarce, mas engana a maioria. O problema é que quando eu puxo a máquina fotográfica, quebra o disfarce. Aí tenho que dar o fora. Perco o disfarce mas não perco a foto.

Entrada de um templo no centro de Udaipur
Perto do hotel não dava pra escapar muito, porque me viam entrar e sair. E se você vai num restaurante, é aquela coisa de "depois vá ali na loja do meu amigo". "Venha, venha". Ficavam feito pombos na rua, a conversar de um lado pro outro e pegar quem passa. Foi nessa que conheci Gopal, num restaurante. Diferente do Gopal da novela, esse era mais franzino. Gopal era quieto, às vezes sorria quando se comentava algo, mas não ia muito além disso. Era um faz-tudo no restaurante: recebia as pessoas na porta, trazia o menu, cozinhava e servia. Fui lá duas vezes. Da segunda havia dois rapazes espanhóis, e começamos a fazer graça, e perguntar se não tinha crocodilo no lago (os crocs habitam a região). E olhamos pra Gopal em busca de uma resposta. Gopal olha pra a gente, e olha, e olha... olha fixamente... de repente Gopal cai.

Convulsiona no chão. A gente dá alguma coisa pra ele morder, mas não resolve muito. E o que mais fazer? Ninguém ali era profissional de saúde. Corre alguém pra descer a escadaria e chamar alguém. Leva Gopal de tuk-tuk pra o hospital público. Deu pena. A cozinhazinha dele, de 2x2, vazia. Fazia milagres ali dentro. Ficaria rico em qualquer restaurante no ocidente. Ainda estou devendo 200 rúpias a Gopal.   

Visão do palácio da cidade, onde há um museu e onde também ainda mora o marajá de Udaipur



Pátio no interior do palácio

Os "pombos" que ficavam ali perto do restaurante de Gopal acabaram todos me conhecendo, e pra consolar eu fui na loja de um. Quer dizer, de dois: Joni e Soni. (Se diziam irmãos, mas quase nunca é verdade). Faziam roupas por encomenda. Já era meu dia final, eu partiria de ônibus cedo na manhã do dia seguinte. "Mas a gente entrega no mesmo dia", diz Joni, conversador fiado. Ok. Como o material era bom e o preço barato, aceitei. Ia pegar de tardinha. Mal sabia eu que estava entrando numa barra funda, a là James Bond.

Fui passear. Parte dessas fotos eu tirei ao fazer um passeio de barco no lago com uns franceses. Normalmente, os passeios se encerram de tarde - ou seja, você perde o pôr-do-sol, que é o melhor. Mas na Índia não há regra que não seja flexível, hehe. Estava eu rondando o lugar de onde sai o barco, e um grupo de franceses chega perguntando se não tem mais barco. Já era de tardinha. O cara: "Não não, é só até 5h, voltem amanhã". "Poxa, mas a gente queria fazer hoje". "Não tem mais. Quer dizer, deixa eu dar um telefonema pra ver se não tem mais mesmo". Hehe, não deu outra, arrumaram um barco e eu me juntei. Fomos inclusive a um dos hotéis de luxo bisbilhotar.


Hotel de luxo, numa ilha no centro do lago de Udaipur
Ali no meio o outro hotel de luxo, onde Mr. Bond estava e onde rolaram as filmagens



Sol se pondo, hora de ir buscar minhas roupas. Chego lá, as roupas estão prontas. Mas aí é que bateu a tentação. "Vou me arrepender de não ter pegado mais", pensei. Só tinha mandado fazer uma camisa. Joni queria que eu fizesse terno, casaco, calça, cueca, o diacho a quatro. "E pelo amor de Deus quando é que tu ia ter tempo de me entregar isso, Joni?". "A gente trabalha de noite", diz ele. Eu fiquei desconfiado, mas queria mais camisas. (Virei meio 'shopaholic' aqui na Índia, com os preços baixos). Falei que só dava metade do $ antes. Aí, como sempre aqui na Índia, depois que você dá o dinheiro vem as coisas: "As camisas ficam prontas hoje de noite, mas pra botar os botões só amanhã de manhã". Faltei meter a mão na cara de Joni. "Não se preocupe não, meu irmão vai lhe levar tudo pronto de manhã no hotel. Seu ônibus é 8h, então 7:30 meu irmão chega lá, a tempo". A essa altura não havia muito o que fazer, a não ser ameaçar dizendo que cabeças iam rolar se esse irmão, Soni, não aparecesse lá. Nisso, Soni chega na loja, e eu falo com o dedo apontado pra ele. "Ok ok, fique tranquilo", ele diz. Hm.

No dia seguinte, já acordei achando que ia fazer churrasco de Joni e Soni. Mas 7:30 Soni estava lá. Soni sim, as roupas não. "Cadê as roupas, Soni?". "Até agora não achei um lugar pra botar os botões, mas agora vai abrir. Vá pra a parada de ônibus que eu te encontro lá antes do seu ônibus sair", diz ele. Eu avisei que perdia o ônibus mas não viajava sem as roupas.

Na parada de ônibus, dá 8h e nada de Soni. O motorista me apressando pra dar a bagagem e entrar. Eu falei que estava esperando alguém, e ligo pra Soni. Ele sugere: "Fica mais perto pra mim alcançar o ônibus numa parada que ele faz na estrada". Ha, essa não, meu camarada. "Nem a pau! Venha onde eu estou que o motorista tá esperando!", "Ok então, tô chegando, 3 minutos e eu tô aí!". Eu digo ao cobrador (tem sempre o figura que pega os tickets e que grita pra pegar mais passageiros na estrada). Sujeito ganancioso. "Três minutos vai custar 50 rúpias". Bah, dois reais, eu queria era as roupas. Liguei pra Soni mais umas quatro ou cinco vezes. 8:20 ele me aparece, e o motorista já bufando, o cobrador comprado por 50 rúpias, e minhas roupas na minha mão. Segui viagem para Jodhpur.


Taj Lake Palace, onde ocorreram as filmagens de 007 contra Octopussy

Entrada de hotel de luxo no lago




Vídeo feito de uma dança folclórica do Rajastão num haveli, uma das "casas coloniais" de que falei.

http://www.youtube.com/watch?v=GGMFLkr7Xgc

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ajmer e Pushkar

Hora de mais uma etapa "família" da viagem! Um dos propósitos do tour pelo Rajastão era visitar os pais de um amigo meu lá de Amsterdã, indiano. Conheci os pais dele nesse verão passado e prometi dar um pulo quando viesse aqui à Índia. Voilà, cá vim eu a Ajmer, uma cidade no caminho entre Jaipur e o sul de colinas-e-lagos do Rajastão. Do lado, Pushkar, uma cidade de peregrinos, por ter o único templo da Índia dedicado a Brahma, o deus criador.

No ônibus povão cheguei eu. 1h da tarde. Solzão a pino. A rodoviária, um desbunde. Mal merece o nome de rodoviária. Na prática um terreno, daqueles em que sobe o cheiro de urina seca na poeira, com lixo por toda parte e plástico amassado pelas rodas dos ônibus e já grudado no chão.

A "rodoviária" de Ajmer, no Rajastão. Poeira, sol e calor - com efeitos aromatizantes pela urina e o lixo.
Acha que os ônibus da sua cidade estão detonados? Esse aqui ainda circula. Interurbano.

A família se tratava dos Mathur, um vô boa praça (e relativamente jovem, na casa dos 70 anos e bastante ativo) e a senhora esposa dele, menos liberal, daquelas que ri pra você mas que no fundo são igual avó nordestina conservadora (não é o caso das minhas, mas eu conheço o tipo).

Seu Mathur foi me buscar na "rodoviária". De carro. No caminho, foi o recorde de vacas por km rodado. Nunca tinha visto tantas. O trânsito uma completa zona mais uma vez, só que agora com muitas ruas estreitas, em que motoristas de outra parte do mundo provavelmente jogariam a toalha. (Ah, aqui na Índia não existe o hábito de construir calçadas, então todo mundo anda na rua; da porta da loja você já está na rua).

Tráfego em Ajmer, numa das vias principais.

Tráfego no centro
No labirinto de becos do centro da cidade.
Com esse programa "família", acabei indo numa série de coisas não-turísticas, o que foi interessante. Visitei um debate estudantil em que Seu Mathur estava de jurado, e fui até em aniversário de criança, hehe. No debate uma coisa interessante: antes de começar, um belo ritual com música religiosa e incenso e vela acesos a Sarasvati, a deusa do conhecimento, para iluminar a cabeça dos participantes. Na Índia há também bastante tradicionalismo para separar meninos e meninas, como vocês a essa altura podem imaginar. E todos de uniforme, as meninas de cabeço trançado - nada de balangandans. Me fez lembrar as histórias de minha avó sobre como era a escola no tempo dela. Boa parte dos colégios separa meninos e meninas em turmas diferentes, e há até mesmo colégios dedicados a um só gênero. Eu visitei, por exemplo, o Mayo College, onde Seu Mathur era professor - e ainda conhece todo mundo por lá - e me levou. Só para rapazes. Parece uma Hogwarts, construída no século XIX. É interno, os alunos são separados em Casas e tudo o mais, como em Harry Potter - e como era habitual na Inglaterra.

Mayo College em Ajmer, seguindo a tradição dos colégios internos da Inglaterra vitoriana, do séc XIX. A este prestigiado colégio vinham (e vêm) os filhos dos marajás e outros que podem pagar. Só pra garotos. Mais recentemente, abriu-se uma "filial" para meninas, o chamado "Mayo College para garotas".
Foi nessa área do colégio, mas não nesse prédio principal, que eu participei de um aniversário de criança - filha de uma professora. Cantam todos o "Happy birthday" em inglês, importado dos tempos de colônia. Cortam o bolo, tudo igualzinho. Me disseram que, tradicionalmente, não havia propriamente uma celebração de aniversário; ia-se ao templo, fazia-se uma oração ou ritual pra aquele dia, e talvez algo em casa. Mas certamente há variação regional nisso aí. De todo modo, hoje em dia todo mundo canta o "happy birthday".

Mas o negócio para visitar mesmo em Ajmer é a "Dargah", a tumba de um santo muçulmano do século XII. (Sim, os muçulmanos adoram visitar tumbas e fazê-las monumento). Peregrinos muçulmanos de toda a Índia - e de países vizinhos - vêm até esses becos do centro de Ajmer pra encontrar o caminho até a Dargah. E lá fui eu.

No caminho, eu volta e meia vendo gente trafegando descalço naquele chão e pensando "Afff como é que o cidadão vem pra cá descalço". Heh, mal sabia que o mesmo destino me esperava. Do ladinho, uma verdadeira Veneza de esgotos, com mais canais que Amsterdã, por cada ruela dos dois lados. Às vezes você via também o esgotão jorrando e os porcos-do-mato coletando coisa. De relance que olhei ficou a imagem, agora gravada na memória, de um porcão abocanhando um limão passado que a água suja ia trazendo. Are baba. 

Entrada da área da Dargah, operação tirar os sapatos (e havia ainda uma certa caminhada por becos até chegar na tumba propriamente dita). Um sacerdote muçulmano amigo do Seu Mathur estava lá pra nos assessorar e a gente pegou um atalho pra contornar as multidões vestidas de branco que estava por aquelas ruas apertadas. Na área não era permitido foto, mas havia uma riqueza em revestimentos de ouro e uma bonita prática e jogar pétalas de flores na tumba, e fazer um pedido. Moinuddin Chishti era conhecido como "o benfeitor dos pobres", então na área há um serviço de alimentação gratuita oferecida aos pobres da região, mantido pelos muçulmanos.

Joguei pétalas, tive fitinha vermelha-e-amarela amarrada no braço pelo sacerdote e tudo o mais. O pé fica sujo da rua mas vale a experiência. Naquele mesmo dia, de tardinha, chegava a hora de ir tomar as bênçãos da outra religião, da hindu. Seguimos então a Pushkar, eu e os dois Mathur.

Diz a lenda que Brahma deixou cair uma flor de lótus na terra e a cidade de Pushkar apareceu. Pelo visto acharam de transformar a flor de lóuts em flor de papoula ou de coca, porque a cidade virou point de drogados (muitos turistas inclusive).

Fomos lá de carro, e havia ainda mais bois e vacas do que em Ajmer. Seu Mathur achou de querer estacionar bem onde havia um bovino. Foi se aprochegando e o bicho nem "tchum". Aí é que veio o melhor:

- Mairon, desce aí.
*Mairon desce*
- Faz ele sair aí.
- ?
- Espanta ele.

Minha resposta foi uma cara incrédula. Desculpa mas não me ensinaram a "espantar" um bicho de 500kg e com chifres. Foi uma bela cena de mim batendo palmas, batendo o pé no chão e fazendo coisas do tipo enquanto meio que me escondia atrás do carro vizinho. Deu certo. Devagarzinho o bicho de moveu e Seu Mathur foi estacionando.

Andamos pela cidade, vimos os turistas maconheiros e passamos por muitas barracas vendendo comida em condições de higiene duvidosas. Seu Mathur parou comigo numa que estava particularmente nojenta. Um frigideirão preto de tanto uso, grande que dava até pra abraçar. Várias rodelas de massa boiando num líquido grosso que eu não sabia se era calda doce ou se era óleo velho - ou alguma mistura dos dois. Lá foi Seu Mathur: "Me dê três". Um homem gordo que estava sentado de pernas cruzadas, com o pé sujo perto da frigideirona, fala alguma coisa e lá detrás vem um menino. O menino então com a mão preta de sujeira mete a mão na calda e vai pegando (aqui na Índia ninguém usa guardanapo ou coisas pra evitar contato direto com a comida... é tudo na mãozona mesmo). Foi a gota. "Não compre pra mim não", fui logo dizendo. "Mas essa é a especialidade daqui". Seu Mathur não ouviu nem resposta. Fiz aquela cara de "Nem f*dendo" e ponto.

Em seguida visitamos o Templo de Brahma, mas eu já estava tão embrulhado com a visão daquela comida que nem aceitei a aguinha com açafrão que o sacerdote oferece. O templo bem simples, mas legal. Os templos hindus são bastante coloridos, com chão de lajota, escadarias, um sino pra você badalar e receber boa sorte, e a área central (cercada) onde ficam altares etc., com acesso só aos sacerdotes. Da beira da cerca você se dirige à divindade, faz sua oração etc. Tudo descalço, então tome-lhe um pouco mais de pé sujo no meio do povão, mas nada que um bom banho não resolvesse.

Por fim, no dia seguinte, visitamos alguns outros monumentos de volta a Ajmer: pavilhões de mármore construídos pelo imperador Shah Jahan à beira de um lago no século XVII, e um pequeno monumento a Gandhi, que estava com guirlandas amarelas pois há poucos dias foi o seu aniversário (dia 2 de outubro), e aqui na Índia o aniversário dos mortos é celebrado pondo-se essas guirlandas em voltas dos seus retratos ou estátuas. Encerro portanto com algumas fotos desses locais.




Pavilhões de mármore ao pôr-do-sol. Construção do Imperador Shah Jahan no século XVII, o mesmo que ordenou a construção do Taj Mahal. Foi um dos grandes imperadores mogóis a governar a Índia, e um grande fã de obras em mármore branco, extraído aqui do Rajastão.

Feliz aniversário, Gandhi! Que sua nação consiga superar os males da pobreza e realçar suas belezas, estéticas e filosóficas.