Pronto, 22 de outubro estava ali, o aniversário havia chegado. Este foi um bem exótico, afinal não é sempre que se está num lugar como Varanasi. Pra começar, eu quis fazer o passeio de barco à luz do amanhecer no rio - tida como a melhor coisa a se fazer na cidade.
(Já que o tema do post é aniversário, e aproveitando a deixa, feliz aniversário, Vinícius! Muita felicidade pra você, meu velho!)
Às 5:30 lá estava eu, ainda meio sonolento mas já preparado. Os barqueiros, como sempre, são da mesma trupe de golpeia-turistas que habita o setor informal de serviços da Índia. Desta vez tínhamos um indivíduo que atendia pelo nome de Babú. Éramos eu, uma argentina, e um grupo de franceses. Do hotel fomos todos seguindo Babú, que já era um homem de meia idade, e eu queria ver como é que ele ia remar esse povo todo no braço.
Chegando no rio eu descobri. Babú era uma espécie de agenciador (os remadores, depois de certa idade, evoluem para remador
manager, que na verdade não rema mais, só delega quem vai remar que grupo e controla a grana). Os coroas franceses bateram o pé querendo ir sozinhos (graças a Deus), então segui só eu e a argentina junto com um dos boys de Babú.
As vistas do rio ao amanhecer são fascinantes. Logo pela manhã já há bastante gente à beira d'água fazendo desde rituais até escovação de dentes.
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Remadores no Ganges ao amanhecer, em Varanasi |
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A população vindo ao rio para orar e para se banhar pela manhã, em Varanasi |
A essa altura a pergunta já deve estar queimando aí: "Cadê, Mairon entrou no rio? Tomou o banho finalmente?". Hehe, não ainda. Pra falar a verdade, não aqui. Não tinha condição, a podridão da água fazia você contrair seus músculos mais íntimos. Dava até medo de o bote de Babú virar.
Como diz minha amiga Letícia, ali há também uma "bagunça de auras" muito grande, oferenda na água por toda parte... parece a praia de Salvador em noite de ano novo. Mas o pior nem é isso, são as saídas de esgoto que você vê vindo da cidade e despejando no rio (não sei como é que permitem uma coisa dessas num rio que eles têm como sagrado, mas enfim). Entrar naquela água ali estava fora de cogitação (a menos que o bote virasse). Mas havia um outro lugar de que eu havia ouvido falar.
No trem, um homem havia me falado. "Vá para Sangam. Fica a 3h de Varanasi, nas vizinhanças de Allahabad, onde os três rios se encontram. Lá você achará o que procura". Decidi que iria para Sangam.
Voltei do bote de Babú, tomei café com a argentina, e a nós se juntou uma brasileira que nos ouviu conversando (primeiro compatriota que eu achei nessa viagem, depois de mais de 1 mês). Matei a saudade do bom humor latino-americano. Ficamos os três tirando sarro das coisas e falando de lugares interessantes pra visitar.
Finalmente, as duas tinham coisas a fazer, e eu também. Operação Sangam. Peguei o tuk-tuk pra a estação de ônibus. Por sorte de aniversário, esse tio do tuk-tuk foi legal e me botou numa dessas vans lotação em que fica o cara do lado de fora gritando "Quem vai! Quem vai! Bóra, Allahabad saindo agora! Tchalô, tchalô!". Eu jamais teria conseguido o mesmo preço que os indianos na lotação estavam pagando, mas como foi o tuk-tukeiro que negociou pra mim, acabou saindo o mesmo preço do ônibus - e bem mais rápido.
Poucas caras indianas são mais engraçadas do que aquela do cidadão que queria estar se aproveitando de você e, por força da circunstância, não conseguiu. O motorista ficava me olhando com uma mistura de risada e apreensão, de como quem diz: "Pô, esse turista aqui e eu tô deixando passar, não estou faturando nada em cima dele". Hehehe.
A van tinha duas enormes suásticas dos lados do pára-brisa, então me senti num veículo patrulha nazista do tempo da Segunda Guerra. Depois de umas 2:30h no aperto chegamos lá. Ou perto. Me largaram no centro de Allahabad, cidade feia e fedida. Uma zona. De lá peguei um ciclo-riquixá (igual ao tuk-tuk, só que o cara vai pedalando; é usado pra distâncias mais curtas). Cheguei não havia um cara-pálida, só indiano. É um ponto onde se encontram o Rio Ganges, o Rio Yamuna, e o Rio Sarasvati. Extremamente auspicioso. (Mais auspicioso ainda em certos dias a cada 6 anos em que há uma certa conjuntura astral; da última vez, em 2007, nada menos que 70 milhões de pessoas vieram pra cá, a maior aglomeração humana já registrada na história. 2013 tem outro. Você não vai ficar fora dessa, vai?)
Cheguei lá, só que ninguém me disse um detalhe: esse Rio Sarasvati não existe. Quer dizer, ele não está lá; a mitologia é que diz que ele existe. Boa sorte tentando convencer um indiano de que ali só passam 2 rios e não 3. A versão varia, alguns dizem que ele passa no subterrâneo, outros dizem que ele passa no céu, rola de tudo. A versão mais coerente (ao meu ver, mas que o povão indiano não vai concordar) é que era um rio que existiu há milhares de anos atrás, quando os textos sagrados hindus foram escritos, e que desapareceu. Há uns estudos indicando registros geológicos disso). Mas pra todos os efeitos, ali, três rios.
Veio um velho me oferecer barco. O negócio é ir lá pra o meião, onde as águas se misturam. "350 rúpias!". O outro velho do lado, "500!". (Depois eu me liguei que o velho do lado fica repetindo '500' só pra eu achar que 350 está barato. Na realidade ambos os preços são um roubo).
"Eu paguei 100 rúpias no Ganges hoje de manhã, meu tio! Você quer me cobrar 300 aqui?"
"Um rio, 100 rúpias; três rios, 300 rúpias"
Desconta o fato que um só existe no mito, né.
"O preço aí é 100 rúpias, não vou lhe pagar 300 não"
"OK, 100 rúpias pra ir"
"E eu por acaso vou ficar no meio do rio, meu tio?"
"Pra voltar, outras 100"
Vi que não ia conseguir muito além disso. Vamos lá, 200 rúpias. Novamente, não era o velho que remava. Ele chamou um rapaz lá que encasquetou que eu entendia hindi e ficou me dando explicações em hindi.
Daqui a pouco vai querer cobrar por explicações que eu não entendi.
A água nesse lugar era melhor, embora não fosse fantástica. Pelo menos não dava nojo. No meio do rio, atracamos o barco a um outro onde estava um sacerdote. Operação a ser cumprida: tomar bênção de aniversário lá no lugar auspicioso. Simbologia bonita. Incluiu a reza de um mantra que ele dizia e eu repetia, derramar leite com pétalas no rio, e comer um bombom de amendoim. Oferendas com pétalas de flores a serem deixadas para a água levar, junto com pedidos, etc. O banho foi de gato, com os pés pra fora do barco e a mão pegando água. Eu não me joguei no rio. Por outro lado, o ritual inclui
beber daquela água. Hehe, muito mais hardcore. Não tinha como dizer na cara do sacerdote "Vamos pular essa parte". É certamente a mais auspiciosa de todas. Então vem lá a caneca, que é na verdade uma cumbuca de metal grande, e você toma uns bons três goles cheios. Pronto, estava purificado.
Ia precisar mesmo, pois a volta foi uma loucura. Não tinha van nazista dessa vez, então fui no ônibus público mesmo. Já falei antes do muvucão que são esses ônibus públicos aqui. Esse foi o cúmulo disso, e de quebra ainda foi de noite pois já tinha escurecido. Vai uma lâmpada incandescente amarela no teto do ônibus pra iluminar enquanto ele fazia loucuras na estrada de mão-dupla.
Um senhor gordo estava sentado do meu lado. E ainda era desses assentos em cima da roda, em que tem menos espaço para as pernas. Aff. Mas ele na verdade foi a salvação, pois estava indo pro mesmo lugar que eu. Esse ônibus ia pra um sem-número de lugares, e Deus é que ia saber qual era a parada de Varanasi àquela hora no escuro. Eu estava vendo a hora é de estar à deriva em plena noite de aniversário no coração de Uttar Pradesh.
"Qual cidade você gostou mais, Allahabad ou Varanasi?", me perguntou ele.
Ambas cheiram a banheiro público.
"Não sei, eu não vi muito de Allahabad"
"Varanasi é melhor, muito melhor"
(Os homens indianos frequentemente não têm uma veia democrática muito forte. Não fazem muito o estilo 'cada um tem uma opinião, é questão de gosto', nada disso. Fazem mais o estilo da pessoa que tem uma opinião formada pra tudo, e se você pensar diferente, ele diz que você está errado. Além disso são mandões, adoram tomar a frente das coisas e lhe dizer o que fazer. Às vezes me lembram aqueles homens do Brasil Império ou de novelas de época da Globo do início do século XX).
Ele continuou. "Varanasi é uma cidade muito boa. Excelente cidade".
Santa maria... imagina se não fosse...
Depois de quatro horas de sacolejo no ônibus, chegamos de volta a Varanasi e o tio me apresentou ao
lanka-lanka, que nada mais é do que o tuk-tuk lotação. Seria o meu transporte até o hotel.
"Já tá cheio, onde é que eu vou?"
O motorista: "Aqui". Apontou pra o pedaço entre ele próprio e a rua (tuk-tuks não tem porta). Pronto, fui com metade do corpo pra fora. Do lado de dentro uma perna, meia polpa da bunda, e um braço. Isso de noite, no trânsito indiano de mão dupla, deixa adrenalina de montanha-russa no chinelo. A bênção do Ganges foi providencial.
No outro dia segui viagem pra Delhi, e depois de uns dias lá num congresso de energias renováveis, vim para o sul do país. Acabei de chegar, e será meu point este novembro. Começo por Hyderabad, onde estou no momento (vejam ali no mapa). Breve histórias daqui. Por ora, deixo vocês com mais fotos do Ganges em Varanasi.